terça-feira, 30 de novembro de 2010

Praia de Santo Apollo – Segunda parte

Quando ainda muito menino, morei no pé da Grande Serra que rodeia Santo Apollo, e bem de longe via o mar e o farol me chamando. Era de lá que vinham as estórias e lendas que permeavam todos na família. No primeiro sopro de noite, eu aproveitava as primeiras horas deitado no telhado da casa, olhando a queda das estrelas, seu momento de último esplendor em labaredas espirais até serem consumidas, descendo lentas pelo teto da avenida principal até a praia, iluminando o caminho, de um longe sem medida, até se tornarem um pontinho claro, quente e reluzente.

Assistia atento, aprendia sobre o ocaso antes do fim da noite, antes do tombo, antes de dormir.

Nós da Serra nos reuníamos muitos dias, meus irmãos, minha mãe, meus vizinhosm só para ouvir os mais velhos contando as histórias que ouviram de seus antepassados sobre os seres que procuram justo a queda dos astros para entenderem a encruzilhada do mundo. Lucy sempre falava de seus músicos, de um dos óculos redondinhos que a observou de longe no farol, enquanto desciam os astros. Coralina falava dos homens cavalgando cavalos bravos que pareciam consumirem a si mesmos, adentrando o mar. A senhora Urânia, que adorava ver os que vestiam turbantes, sempre um mais jovem, de tempos em tempos, medindo toda a cena, repetindo com detalhes os mapas, os esquadros e os compassos. Muitas eram as histórias, da encruzilhada deixada na areia para um violonista rir de seu destino, de um magro monge que sorria ao bater das ondas, de uma senhora que buscou visões por mil luas para não morrer nas mãos de seu marido.

De tantas boas histórias, a minha favorita era a do homem sobre a pedra e da pedra sob o homem, como intitulou minha avó, e fez a todos entender por completo os fins e os meios da cena repetida e que rodeava a cultura de mais de milhões de anos que vivíamos. Naquele tempo o então jovem coletor Isaac era guiado pelo já cego Hermes e se perguntava todos os dias como era possível que caíssem estrelas tão fortes. Em dia em que essa ideia lhe abateuviolentamente, apareceu-lhe um sorridente senhor, careca em óculos fundos e sangue cheio de ferro, que via a cenas desde a manhã, da mesma pedra do farol. Ele lhe entregou um punhado de esferas que a cheia levou até a base de seu sítio de descanso dizendo-lhe para pensar na pedra, para entender seu engima.

Isaac deixou que seu mestre seguisse e perguntou sobre o porquê da alegria, logo em cima de uma pedra tão instável e áspera, que ainda iria se dissolver no ar ainda mais rápido que as Esferas. O senhor lhe respondeu de pronto, sem muito ruminar a idéia, que haviam de ser mil pedras em um caminho longo e eterno, e que, até para os astros, o ciclo deve ser continuado. Se por um homem sempre à esquerda, pela mão de anjos, na tenebrosa luz ou para dizer aos bois que a hora de acordar chegou. Eram apenas retinas vendo e corações se perguntando, sempre no presente, sempre em um momento tão profano quanto o próprio presente. Se era assim tão passageiro, a queda das estrelas ou o dissolver de uma pedra, seu brinquedo de incomodar como a chamou, o importante mesmo era observar tudo para não esquecer. Se importar com o que vê.

Esse pensamento me levou a pensar nesses anos todos. Elas todas vão para os necessitados, se for permitido, criar outras estrelas, mesmo que imaginárias, dentro ou fora do universo, assim como criávamos todos os dias alí nas fogueiras de minha infância. Nesses anos todos vi mulheres de joelhos, pedindo conselhos e proteção aos outros, vi famintos agonizando em preces, vi reis caídos e plebeus gloriosos, dividindo vinho e lições. Era seu presente um ponto brilhante, ali seu conforto, ali o nascimento de um novo universo próprio e tão grande quanto aquele em que o céu da praia de Santo Apollo apontava.

Todos os meus dias, descalço e cercado de tantos mundos despertou em mim essa bravura no presente e, quando assim apareceu um menino que dizia ser todos os mundos daquela Esfera que tinha na mão, o treinei bem à beira da fogueira, para que ouvisse, logo em tempo e tanto quanto eu, todas as histórias de uma praia imensa e que absorvesse dali dos olhos, gestos e palavras de todos, a si mesmo diluído.

Para ele confidenciei que foi deste modo que despertou em mim a moça da pedra dos olhos brilhantes. Assim lhes conto meu destino, pois assim viu a pessoa de meu pupilo Caeiro, quando percebi o momento, logo antes, de terminarem as nebulosas por consumirem minhas vistas, peguei na mão de uma já senhora moça sentada na pedra e, nos mediando uma estrela em seu colo, nos dissolvemos no ar, levados pelo vento. Nós nos tornamos aquele presente que vimos desde o primeiro dia de minha vida coletando a história do universo.