quarta-feira, 16 de junho de 2010

Ofício



Levantei no domingo como quem levita da cama. A janela mostrava uma profusão de cores num pantone que não conseguia descrever. Saí sem me lavar, seguindo até a padaria numa das quatro esquinas que me rodeavam, comprei-me um maço de vinte literatos para explicar-me o dia melhor. Ao acender o primeiro percebi que o dourado matinal, se tranformando num anis calmo e eterno, rodeado por nuvens algodoadas já havia sido escrito algumas centenas de milhares de vezes. Meia-volta, café, pães, lotações apinhadas, frio matinal entrando pelo casaco, mais um passo e o sedã vermelho quase me tira o suspiro. Acendi o segundo e formulei uma boa narrativa sobre a morte eminente e os seundos que se tornam décadas antes do golpe, de um homem jovem e que poderia melhorar sua existência, eliminar qualquer procrastinação, alguém já escreveu e o senso comum se apoderou por clichê, cabeceei o poste, esqueci do nome da personagem e da bela senhorita que ele se declararia depois do devaneio em que conversava com Hades. Pena não poder amassar o papel ou deletar o arquivo, um dos maiores prazeres de um escritor ruim, como uma explicação para a falta de técnica, o papel em branco diz que o mundo pode ser novo.
Falando em pena, compro-me uma após o almoço, piedade com cerdas e ponta fina número seis. A tinha perdido depois de matar meu serralheiro poeta em um de meus contos, a golpes de formão e furos de furadeira. Agora poderia vender alguns finais felizes, ao modo das boas novelas. O problema é segurar os heróis separados até o fim do texto. Acendo o sexto literato e resolvo amassar o papel, ou talvez a escrivaninha. Resolvo voltar a meus dois litros de café e ao fantasioso nonsense, a cama me chama e sonho amassando alguns quadros de Dali e desenhando obsenidades em outros, pra tirar o surreal dali. Ao me levantar novamente escuto alguns violões dos vizinhos abaixo, alguns gritos e o barulho de copos a bater, penso estar sozinho. A escrivaninha me chama pra falar da solidão, sentimento necessário pra qualquer escritor que queira ser legal, imagino-me sozinho andando pelas ruas, narrando as coisas que só quem anda por si só pensa, abri uma garrafa de estilística para me aprofundar e quando dei por mim, já estava no apartamento de baixo cantando alguns clássicos da década passada e me embebedando com os vizinhos.
Ao retornar resolvi terminar o ofício, idealizei uma mulher na cama, porém não consegui me decidir por morena em curvas e pecados, alva como a musa de um cavaleiro medieval.Como estava sem fogo para um último literato, não dicerni bem cena alguma e quando percebi, havia dormido com uma vaca holandesa malhada.

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