sexta-feira, 20 de abril de 2012

Se podes ler, repara: A cegueira e a cegueira de Saramago



Com seis graus de astigmatismo desde sempre, a possibilidade de perder o sentido da visão se tornou para mim um pesadelo constante. Ao ler ensaio sobre a cegueira, esse pesadelo cresceu e essa cegueira, que antes representava para mim não achar as lentes ao acordar, ganhou outro significado.
Não me restaram dúvidas que a experiência causada por Saramago é como um teleporte para uma realidade alternativa, tão plausível, que causa espanto. Através de uma linguagem que requer do leitor grande imersão, Ensaio sobre a cegueira conseguiu, por diversas vezes, que as letras no papel fossem clareando, tom a tom, caminhando para uma brancura insuportável a ponto que tive de me afastar do livro e chacoalhar a cabeça algumas vezes, apertar bem os olhos, para só então voltar à leitura.
Leitura essa que é muito apoiada por um narrador incerto, de linhagem sanguínea kafkiana, muito pouco confiável. Ele mais cogita do que conta, não só porque reflete sobre os possíveis caminhos que a trama deveria ou não seguir, mas porque participa da cegueira ativamente e parece tatear junto dos personagens sem nome as paredes do sanatório, do supermercado e das ruas impossivelmente brancas.
O cinismo, a atenção e entrega requeridos, além dos espaços labirínticos, mesmo que vistos pelos olhos da única personagem a conservar a visão, vão transformando o leitor à medida que ele avança no texto. Passei a sentir texturas, cheiros e a ouvir barulhos que não ouvia, enfim passei a reparar, pelo menos num sentido que fala ao leitor o prelúdio do livro, mesmo que por aquele breve e tortuoso momento que passei com o texto.
Numa descrição visceral dos caminhos que seguiam os personagens por aquele mundo caótico, o livro foi me levando para uma reflexão junto daquele ritmo estranho e novo. Saramago conseguiu, com sua cegueira branca, abrir em mim a possibilidade de uma visão ampla e privilegiada, mas pediu um preço: Noites de sono e todos os meus conceitos jogados no lixo.
Resta saber se você terá a mesma disposição.

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